quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O avesso do espelho

Faz semanas que quero escrever no blog sobre os espelhos. Queria falar justamente sobre a necessidade (e dificuldade) de olhar no mais importante deles: o espelho da nossa alma. Mas quem disse que eu tive coragem suficiente para encarar meu próprio espelho pra poder falar disso sem hipocrisia? É, minha gente, às vezes (ou quase sempre) a teoria é muito mais fácil que a prática. Mas, nesse caso, escrever a respeito exige um reconhecimento, e esse reconhecimento é a própria materialização do tal espelho da alma. Tá confuso, né? Vamos ver se ao longo do texto eu consigo simplificar a coisa para nós todos!
Vamos começar pelo conceito do espelho. O que é que esse objeto encantado, tem de mais? O que tanto nos distrai, o que tanto nos seduz, o que tanto nos revela? Nas aulas de física, aprendi sobre o  caráter ilusório da imagem refletida. Nas aulas de história, aprendi que o espelho foi objeto-símbolo na sedução dos índios em troca da terra. O espelho de Harry Potter revelava os desejos inalcançáveis. O reflexo, em suas mil significações, a um só tempo matou Narciso e salvou Oxum. "Mas nos deram espelhos, e vimos um mundo doente", disse o Renato Russo. Espelho, espelho meu, obsessão de uma rainha. Ambiguidade de cristal: artefato mágico que esconde o que revela e revela o que esconde.
O problema do espelho é a imagem, quase sempre distorcida. Desde o reflexo do rio, vi uma imagem e dei a ela o meu nome. Quando envelheci, deixei que a imagem da velha fosse mais do que eu mesma. Quando me envaideci, deixei que a imagem de uma deusa se sobreposse a quem eu sou. Quando adoeci, liguei mil e uma câmeras, espelhos modernos na Era das Imagens. Eu não me via, não me enxergava. A imagem de mim, as mil imagens de mim, me distraíram de quem sou. Me colocaram na vitrine. Imagem distorcida. Escrava do espelho. Nesses novos velhos tempos, nunca sou minha imagem e minha imagem sempre parece ser mais que eu. Se feia: horrenda. Se linda: bem-quista. Se humana: mortal. Apenas mortal. Num mundo de instantâneos deuses, sou apenas mortal.
Essa é a realidade do espelho. Para se olhar no espelho, é preciso, primeiro, quebrar o espelho. Nada do que dizem que é minha imagem revela a realidade de quem sou. O sumidouro do espelho. Para reconhecer a eternidade de minha alma, preciso me ver humana. Preciso romper com as ilusões de tudo que sei que não sou. Não sou a imagem, sou o que nela se move. Eu sou a realidade de cada segundo. Eu sou a verdade. Qual é a minha verdade? Derradeiro espelho, espelho meu. Quem é que tem coragem de olhar no fundo de si? Eu, a deusa. Eu, a bruxa. Eu, humana. Quando vamos nos reconhecer? Imagem rompida: Sarah, te apresento a Sarah. Eis o dia que aprendo a me olhar sem me julgar. — Prazer, Sarah! — E aceito minhas dores. E aceito meu riso. E aceito todas as minhas potencialidades e, para tanto, todas as minhas responsabilidades. Aceito meus medos e minha coragem. Aceito minha inveja e minha bondade. Aceito meu desprezo e minha compaixão. Meu espelho é água corrente. É caleidoscópio. Eu sou todas e nenhuma imagem de quem acho que sou.
Por que é tão difícil? Por que demorei tantas semanas para conseguir escrever sobre isso? Porque, meus queridos, aprendi a ter vergonha de ser invisível. Ter vergonha de não ter imagem para refletir. Eis a verdadeira nudez. Como vou me despir assim? Mais fácil tirar a roupa que livrar-me dos disfarces. Espelho na frente de espelho, na frete de espelho, na frente de espelho, para nunca olhar no derradeiro: olhos com os olhos de minha alma. Temos medo de sermos humanos. Medo de nos reconhecer. Medo até de nos pegarmos no colo. Por isso nos disfarçamos. Por isso nos distraímos com as mil possibilidades do que poderíamos ser. Mas, eis-me aqui escrevendo. Eis-me aqui a finalmente buscar o último e primeiro dos meus reflexos. Jornada danada de se desbravar. Resolvi buscar em mim uma pessoa querida, que depende do meu colo. Apenas meu colo pode suprir minha própria dor. O espelho da minha alma, no fim das contas, é apenas (nunca pequeno, mas sempre simples) o tal do Amor.
O verdadeiro espelho: ora yê yê ô!


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